quarta-feira, 15 de abril de 2015

Cisões no futebol carioca - parte 2 - A revolta dos grandes

A segunda cisão do futebol carioca ocorreu em 1924 e até hoje é tema para inúmeras pesquisas e teses sobre suas reais causas.
 
Sem entrar no mérito de qual tese está correta ou não, o fato é que havia na época uma clara divisão de interesses entre os clubes filiados à LMDT. De um lado os grandes da época - Fluminense, Botafogo, Flamengo e América, chamados de "os estabelecidos"; e de outro os pequenos, com Vasco e os demais clubes menores, chamados de "os outsiders".
 
(Nota do Blogueiro: qualquer semelhança com a atual situação no futebol carioca é mera coincidência)
 
A LMDT criada em 1917, teve como principal bandeira herdada da liga anterior (LMSA) a manutenção do amadorismo. Fora criada com o objetivo principal de manter, organizar e oficializar a prática do futebol de acordo com os conceitos dos clubes fundadores, todos eles pertencentes às classes mais abastadas da cidade, que davam ao futebol um status de uma "tradição inventada" delimitada pelo amadorismo.
 
O futebol carioca vivia um processo acelerado de profissionalização. Esse processo foi o resultado de uma “esportivização” e “espetacularização” do campo das práticas esportivas, em que a concepção do futebol enquanto uma prática amadora, desinteressada e formadora do caráter do jogador perdia espaço para um esporte competitivo e cada vez mais mercantilizado.
 
Impregnada por uma gama de novos interesses, a percepção dos clubes sobre a prática esportiva havia mudado. Não podemos afirmar que essas entidades estivessem dispostas a preservar o amadorismo. Fatos ocorridos no início da década de 20 revelam que tanto o amadorismo quanto as práticas não amadoras compartilhavam o mesmo espaço no futebol fluminense. Portanto a questão não gira em torno de caracterizar os clubes que adotavam as práticas amadoras ou não amadoras.  Na verdade, o cerne da questão estaria relacionado às motivações e interesses de cada entidade na adoção dessas determinadas práticas.
 
E foram estas motivações e interesses pessoais que provocaram uma série de disputas políticas entre os clubes de futebol no interior da LMDT.
 
A situação se agravou de vez com a eleição de Agrícola Benthlen do Vila Isabel Football Club para a presidência da LMDT, em 1923. Tal fato permitiu a ascensão dos pequenos clubes ao controle da liga, retirando os grandes clubes do poder.
 
Para piorar, diferentemente de todas as temporadas anteriores, em 1923, pela primeira vez, a comunidade esportiva presenciaria um clube sem tradição nos esportes terrestres conquistando o campeonato da cidade.
 
Valendo-se de uma nova forma de treinamento implantada por seu técnico uruguaio Ramón Platero, onde o preparo físico e a boa alimentação eram privilegiados, os “Camisas Negras” – como eram chamados os jogadores do Vasco da Gama, impuseram um ritmo intenso de vitórias diante de clubes tradicionais, terminando o torneio somente com uma derrota diante do Flamengo.
 
Em pé: Nicolino, Lingote, Nélson, Leitão, Artur e Bolão;
Agachados: Paschoal, Tortelloni, Arlindo, Ceci e Negrito
 
O aumento do poder dos outsiders passou a afetar o domínio político dos clubes mais tradicionais da cidade, que, diante dos fatos políticos ocorridos em 1923 e da discordância com uma série de atos tomados pela nova diretoria da LMDT, passariam, com base no critério do desenvolvimento material e da cultura esportiva, a pleitear direitos especiais na liga.
 
Em 1924, o recrudescimento dos ânimos do ano anterior se acentuou e as disputas políticas que tiveram em 1923 um caráter de defesa de interesses particulares majoritariamente, passaram a primar pelo interesse comum, numa tentativa dos grandes clubes de reestabelecimento da ordem e de seu poder político.
 
Então, numa reunião na LMDT, Mário Polo – representante do Fluminense, pegou para si a palavra e dizendo não estar ali como um revolucionário, mas sim como um reconstrutor, falou em nome de seu próprio clube e dos demais clubes grandes (Flamengo, Botafogo e América), propondo uma profunda remodelação dos estatutos da LMDT. Dissertou sobre a relação entre o amadorismo e as práticas não amadoras, não concordando que ambos estivessem caminhando no momento de braços dados sem que uma sindicância eficaz venha a separá-los.
 
Apresentou então um novo documento para reger as normas da liga, que possuía duas características marcantes. Primeiro o interesse explícito dos clubes grandes de assegurarem o controle político da entidade – a proposta previa a criação de um conselho deliberativo, formado por nove membros, dos quais quatro deles seriam indicados de cada um dos quatro grandes clubes, e os cinco restantes, representantes dos clubes menores, também indicados pelos próprios grandes!
 
E o segundo aspecto era o discurso em defesa da distinção traduzida em um modelo amador de competição. Os representantes dos clubes deveriam comunicar eleição e a constituição de sua diretoria, com a indicação de residência e profissão dos diretores e local onde estes exerciam suas atividades profissionais; além de reafirmar as regras sobre a inscrição dos atletas amadores – estes não poderiam exercer qualquer tipo de profissão ou empregos subalternos, tais como contínuo, servente, engraxate e motorista.
 
A proposta também estabelecia um prazo de cinco anos para os clubes reformarem ou construírem instalações próprias e apropriadas para a prática do futebol.
 
Tais propostas dividiram os times pequenos – alguns concordavam e outros não, mas o que os uniu foi a oposição à proposta de implantação do sistema de eliminatória olímpica, que estabelecia a prática de outras modalidades esportivas como critério para participação da divisão principal do campeonato. Esse modo de eliminatória deveria substituir aquela que tomava como critério apenas o desempenho do clube na modalidade futebol.
 
América, Botafogo, Flamengo e principalmente o Fluminense, tentavam restabelecer suas posições fazendo com que se preservasse a sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em “seu lugar”, subjugados aos seus interesses políticos e esportivos.
 
Note que não havia em momento algum um desejo dos clubes sublevados de afastarem os clubes menores de seu convívio. Ao contrário, os grandes clubes pretendiam se manter como defensores do futebol amador carioca, enquanto aos pequenos clubes restaria uma condição de insubordinados, aqueles que precisavam ser contidos, pois ameaçavam a fidalguia do esporte na cidade.
 
Importante também registrar o posicionamento do Vasco da Gama, campeão de 1923, diante de tais propostas. O clube cruzmaltino não discordava nem da eliminatória olímpica (afinal já possuía tradição nos esportes náuticos e em outros), e nem do prazo estabelecido para construção de instalações esportivas. A discordância situava-se na desigualdade de direitos de discussão e de voto em favor dos reformadores, além do fim na “flexibilização” das regras a serem impostas somente aos clubes pequenos em relação às profissões de seus atletas.
 
Várias reuniões foram realizadas para discutir os artigos da proposta dos grandes, mas por 21 votos a 15, a eliminatória olímpica foi rejeitada.
 
Amparados no discurso amador, de que o esporte serviria para o pleno desenvolvimento físico, e que a eliminatória olímpica era um critério de distinção esportiva – pois muitos clubes não desenvolviam outras atividades – e material, já que muitas entidades não possuíam praças esportivas com estruturas adequadas, o que manteria um abismo entre os mais tradicionais e a maioria dos clubes pequenos; no dia 22/02/1924 a cisão é consumada: Fluminense, Flamengo, América, Botafogo e Bangu, oficiam à LMDT o pedido de desligamento.
 
Em seguida, no dia 29/02/1924 (mas como era ano bissexto, oficializaram a data de fundação no dia 01/03/1924), os clubes dissidentes fundam a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA).
 
 
Antes mesmo de se prosseguirem as discussões sobre o novo estatuto na LMDT, uma verdadeira debandada dos clubes pequenos em direção à AMEA se iniciou. Para estes, participar da AMEA era uma forma de se manterem próximos dos grandes clubes, usufruindo do carisma dos mesmos, mesmo que para isso deveriam se submeter às normas específicas do grupo.
 
Mas a grande expectativa girava em torno do que faria o campeão de 1923 – o Vasco da Gama, diante de tal situação. Por unanimidade, os fundadores da AMEA decidiram convidar o Vasco a participar da nova entidade, mas sob as mesmas condições impostas aos demais clubes pequenos. As posições dentro do próprio clube eram divergentes. Alguns sócios, liderados pelo ex-presidente Antônio Campos eram contrários à filiação à AMEA; e outros, liderados pelo sócio benemérito José da Silva Rocha, eram favoráveis à filiação.
 
Diante da determinação da AMEA de que os clubes pequenos quando jogassem entre si, só disputariam partidas aos sábados, enquanto que os grandes jogariam sempre aos domingos – o que na prática trazia prejuízos frente aos públicos menores dos jogos nos sábados (provando mais uma vez a distância entre o discurso do amadorismo e a prática profissional dos grandes); principalmente da exigência de eliminação de 12 atletas, sendo sete do primeiro quadro e cinco do segundo, escapando somente os jogadores Nelson, Mingote, Paschoal e Torterolli do time campeão de 1923, a diretoria do Vasco da Gama pediu o seu desligamento da AMEA, anunciou o seu retorno à LMDT e publicou um ofício nos principais jornais da cidade, explicando com exatidão todas as insatisfações do clube.
 
Este documento é conhecido entre os vascaínos como a “Resposta Histórica”.
 
 
Provavelmente, além da implicância com a participação jogadores pobres, negros e profissionais, os clubes fundadores estavam preocupados com a perda da supremacia esportiva – e com ela a redução do número de aficionados e consequentemente a diminuição da renda, por exemplo, − diante do excelente desempenho dos clubes filiados, com equipes bem mais estruturadas e com jogadores cada vez mais talentosos.
 
Quando observamos a carta do Vasco da Gama endereçada à AMEA, percebemos que o primeiro tentava atacar diretamente os representantes da nova entidade, revelando o interesse em se opor e, de certa forma, atingir os alicerces políticos da AMEA. Inicialmente, o presidente vascaíno, José Augusto Prestes, demonstrou seu descontentamento em relação ao excesso de autoritarismo por parte dos grandes clubes, principalmente os “privilégios concedidos aos cinco clubs fundadores da AMEA e a fórma porque será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações”.
 
Posicionando-se como uma vítima dos mandos e desmandos políticos da AMEA, o presidente ainda destacou que o estatuto era preconceituoso, e que a posição subalterna do Vasco da Gama estava sendo definida a partir das “difficuldades do nosso campo, [...] [da] simplicidade de nossa sede, [e da] condição modesta do grande número dos nossos associados”.
 
Mantendo seu discurso sobre o preconceito social, José Augusto Prestes não se conformou com o afastamento sumário de alguns de seus jogadores. Para ele, “o processo por que foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consórcios foi levado a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa”, afastando dos campos “alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras victórias, a do Campeonato de Football da cidade jovens, quasi todos brasileiros, no começo da sua carreira”.
 
A resposta da AMEA ao ofício do Vasco da Gama reforça a proposta de que essa entidade buscava uma forma de assegurar o controle político do futebol. Surpreso por tomar conhecimento do ofício pela leitura dos jornais, Arnaldo Guinle rebateu o protesto sobre o excesso de autoritarismo por parte dos clubes fundadores destacando que a organização da AMEA já era conhecida  pelo Vasco antes de seu pedido de filiação”, e  reforçou que os direitos dos fundadores da AMEA, não seriam os mesmos concedidos ao clube cruzmaltino. No que tange ao impedimento de alguns atletas do Vasco da Gama, Arnaldo Guinle se mostrou surpreso pelo fato do Vasco não ter protestado em relação à sindicância, afirmando que nunca poderia ter negado a quem quer que fosse o direito de defesa, porém em seguida o dirigente justificou a situação alegando impossibilidade de discutir “todos esses casos particulares naquelle momento, dada a exigüidade de tempo que nos separava do início dos campeonatos officiaes da actual temporada sportiva”.
 
Aquilo que, aparentemente parecia uma justificativa embasada nos critérios políticos, mostrou-se afinal como um critério subitamente aleatório.  Mesmo embasando suas respostas sob um foco estritamente político, a carta do presidente da AMEA revelou certo preconceito social quanto à composição da equipe do Vasco da Gama.
 
A posição social de muitos sócios portugueses do Vasco da Gama garantia parte do prestígio do clube diante dos olhos de Arnaldo Guinle. Contudo, o cultivo das boas relações entre Guinle e alguns nomes da elite lusitana não foi suficiente para que o Vasco da Gama mantivesse a sua equipe. Mesmo com o corte da maioria dos atletas, os critérios estabelecidos pela AMEA acabaram poupando alguns jogadores consagrados na temporada de 1923 como o goleiro do Vasco da Gama Nelson da Conceição. A permanência do goleiro Nelson, um modesto chofer, apesar de todo o radicalismo dos novos estatutos, revela que as possibilidades de acesso de jogadores pobres e que exercessem profissão braçal permanecia indicando que os critérios de seleção permaneciam imprecisos, contraditórios e possivelmente ligados a interesses políticos particulares.
 
 José Augusto Prestes
Presidente do Vasco da Gama em 1924
 
Arnaldo Guinle
Presidente da AMEA em 1924
 
Em resumo, repetindo o que ocorrera em 1912, em 1924 tivemos dois campeonatos. Um organizado pela LMDT, vencido novamente pelo Vasco; e o outro organizado pela AMEA, vencido pelo Fluminense. Os dois campeões são hoje reconhecidos pela FERJ.
 
Em 1925, o Vasco foi admitido na AMEA, graças ao apoio de Carlito Rocha então presidente do Botafogo (muitos dizem que aí está a origem da amizade entre botafoguenses e vascaínos), que soube vencer as resistências internas na AMEA. Para ser admitido, o Vasco aceitou sediar os seus jogos no campo do Andaraí, na rua Barão de São Francisco, onde hoje está o Boulevard Rio Shopping; mas pode manter todos os seus jogadores campeões em 1923 e 1924 incondicionalmente.
 
A LMDT não foi extinta em continuou organizando campeonatos estaduais até 1932, tendo como campeões os seguintes clubes: 1925 - Engenho de Dentro AC; 1926 e 27 - Modesto FC; 1928 e 29 - Sport Club America; 1930 - Grêmio Esportivo Santa Cruz; 1931 - Oriente AC; e 1932 - Sport Club Boa Vista. Curiosamente, nos dias atuais, para efeito de contagem de títulos, a FERJ não considera tais campeonatos, ao contrário do que faz em relação a 1924 com o título do Vasco.
 
 
Mais uma vez se pacificava o futebol carioca, até que nova cisão aconteceria. Mas isso é papo para o nosso próximo texto.
 

 
Fluminense campeão de 1924 pela AMEA
Time base: Haroldo, Léo, Petit, Nascimento, Floriano, Fortes, Zezé, Lagarto, Nilo, Preguinho e Moura Costa
 
 
Vasco da Gama campeão de 1924 pela LMDT
Em pé: Leitão, Mingote, Brilhante, Negrito, Nelson, Ceci, Russinho, Arthur, Pascoal e Torterolli.
Agachado: Bolão

2 comentários:

  1. Muito legal, Kiko!!! Este texto merecia ser em 2 partes, mas está muito bacana o trabalho de pesquisa. Parabens!!!

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