A
segunda cisão do futebol carioca ocorreu em 1924 e até hoje é tema para
inúmeras pesquisas e teses sobre suas reais causas.
Sem
entrar no mérito de qual tese está correta ou não, o fato é que havia na época
uma clara divisão de interesses entre os clubes filiados à LMDT. De um lado os
grandes da época - Fluminense, Botafogo, Flamengo e América, chamados de
"os estabelecidos"; e de outro os pequenos, com Vasco e os demais
clubes menores, chamados de "os outsiders".
(Nota
do Blogueiro: qualquer semelhança com a atual situação no futebol carioca é
mera coincidência)
A
LMDT criada em 1917, teve como principal bandeira herdada da liga anterior
(LMSA) a manutenção do amadorismo. Fora criada com o objetivo principal de
manter, organizar e oficializar a prática do futebol de acordo com os conceitos
dos clubes fundadores, todos eles pertencentes às classes mais abastadas da
cidade, que davam ao futebol um status
de uma "tradição inventada" delimitada pelo amadorismo.
O futebol
carioca vivia um processo acelerado de profissionalização. Esse processo foi o
resultado de uma “esportivização” e “espetacularização” do campo das práticas
esportivas, em que a concepção do futebol enquanto uma prática amadora,
desinteressada e formadora do caráter do jogador perdia espaço para um esporte
competitivo e cada vez mais mercantilizado.
Impregnada
por uma gama de novos interesses, a percepção dos clubes sobre a prática
esportiva havia mudado. Não podemos afirmar que essas entidades estivessem
dispostas a preservar o amadorismo. Fatos ocorridos no início da década de 20
revelam que tanto o amadorismo quanto as práticas não amadoras compartilhavam o
mesmo espaço no futebol fluminense. Portanto a questão não gira em torno de
caracterizar os clubes que adotavam as práticas amadoras ou não amadoras.
Na verdade, o cerne da questão estaria relacionado às motivações e interesses
de cada entidade na adoção dessas determinadas práticas.
E
foram estas motivações e interesses pessoais que provocaram uma série de
disputas políticas entre os clubes de futebol no interior da LMDT.
A situação se
agravou de vez com a eleição de Agrícola Benthlen do Vila Isabel
Football Club para a presidência da LMDT, em 1923. Tal fato permitiu a
ascensão dos pequenos clubes ao controle da liga, retirando os grandes clubes do
poder.
Para
piorar, diferentemente de todas as temporadas anteriores, em 1923, pela
primeira vez, a comunidade esportiva presenciaria um clube sem tradição nos
esportes terrestres conquistando o campeonato da cidade.
Valendo-se
de uma nova forma de treinamento implantada por seu técnico uruguaio Ramón Platero,
onde o preparo físico e a boa alimentação eram privilegiados, os “Camisas
Negras” – como eram chamados os jogadores do Vasco da Gama, impuseram um ritmo
intenso de vitórias diante de clubes tradicionais, terminando o torneio somente
com uma derrota diante do Flamengo.
O
aumento do poder dos outsiders passou
a afetar o domínio político dos clubes mais tradicionais da cidade, que, diante
dos fatos políticos ocorridos em 1923 e da discordância com uma série de atos
tomados pela nova diretoria da LMDT, passariam, com base no critério do
desenvolvimento material e da cultura esportiva, a pleitear direitos especiais
na liga.
Em
1924, o recrudescimento dos ânimos do ano anterior se acentuou e as disputas
políticas que tiveram em 1923 um caráter de defesa de interesses particulares majoritariamente,
passaram a primar pelo interesse comum, numa tentativa dos grandes clubes de
reestabelecimento da ordem e de seu poder político.
Então,
numa reunião na LMDT, Mário Polo – representante do Fluminense, pegou para si a
palavra e dizendo não estar ali como um revolucionário, mas sim como um
reconstrutor, falou em nome de seu próprio clube e dos demais clubes grandes
(Flamengo, Botafogo e América), propondo uma profunda remodelação dos estatutos
da LMDT. Dissertou sobre a relação entre o amadorismo e as práticas não
amadoras, não concordando que ambos estivessem caminhando no momento de braços
dados sem que uma sindicância eficaz venha a separá-los.
Apresentou
então um novo documento para reger as normas da liga, que possuía duas
características marcantes. Primeiro o interesse explícito dos clubes grandes de
assegurarem o controle político da entidade – a proposta previa a criação de um
conselho deliberativo, formado por nove membros, dos quais quatro deles seriam
indicados de cada um dos quatro grandes clubes, e os cinco restantes,
representantes dos clubes menores, também indicados pelos próprios grandes!
E
o segundo aspecto era o discurso em defesa da distinção traduzida em um modelo
amador de competição. Os representantes dos clubes deveriam comunicar eleição e
a constituição de sua diretoria, com a indicação de residência e profissão dos diretores
e local onde estes exerciam suas atividades profissionais; além de reafirmar as
regras sobre a inscrição dos atletas amadores – estes não poderiam exercer
qualquer tipo de profissão ou empregos subalternos, tais como contínuo,
servente, engraxate e motorista.
A
proposta também estabelecia um prazo de cinco anos para os clubes reformarem ou
construírem instalações próprias e apropriadas para a prática do futebol.
Tais
propostas dividiram os times pequenos – alguns concordavam e outros não, mas o que
os uniu foi a oposição à proposta de implantação do sistema de eliminatória
olímpica, que estabelecia a prática de outras modalidades esportivas como
critério para participação da divisão principal do campeonato. Esse modo de
eliminatória deveria substituir aquela que tomava como critério apenas o
desempenho do clube na modalidade futebol.
América,
Botafogo, Flamengo e principalmente o Fluminense, tentavam restabelecer suas
posições fazendo com que se preservasse a sua identidade e afirmasse sua
superioridade, mantendo os outros firmemente em “seu lugar”, subjugados aos
seus interesses políticos e esportivos.
Note
que não havia em momento algum um desejo dos clubes sublevados de afastarem os clubes
menores de seu convívio. Ao contrário, os grandes clubes pretendiam se manter
como defensores do futebol amador carioca, enquanto aos pequenos clubes
restaria uma condição de insubordinados, aqueles que precisavam ser contidos,
pois ameaçavam a fidalguia do esporte na cidade.
Importante
também registrar o posicionamento do Vasco da Gama, campeão de 1923, diante de
tais propostas. O clube cruzmaltino não discordava nem da eliminatória olímpica
(afinal já possuía tradição nos esportes náuticos e em outros), e nem do prazo
estabelecido para construção de instalações esportivas. A discordância
situava-se na desigualdade de direitos de discussão e de voto em favor dos reformadores,
além do fim na “flexibilização” das regras a serem impostas somente aos clubes
pequenos em relação às profissões de seus atletas.
Várias
reuniões foram realizadas para discutir os artigos da proposta dos grandes, mas
por 21 votos a 15, a eliminatória olímpica foi rejeitada.
Amparados
no discurso amador, de que o esporte serviria para o pleno desenvolvimento
físico, e que a eliminatória olímpica era um critério de distinção esportiva –
pois muitos clubes não desenvolviam outras atividades – e material, já que
muitas entidades não possuíam praças esportivas com estruturas adequadas, o que
manteria um abismo entre os mais tradicionais e a maioria dos clubes pequenos;
no dia 22/02/1924 a cisão é consumada: Fluminense, Flamengo, América, Botafogo
e Bangu, oficiam à LMDT o pedido de desligamento.
Em
seguida, no dia 29/02/1924 (mas como era ano bissexto, oficializaram a data de
fundação no dia 01/03/1924), os clubes dissidentes fundam a Associação
Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA).
Antes
mesmo de se prosseguirem as discussões sobre o novo estatuto na LMDT, uma
verdadeira debandada dos clubes pequenos em direção à AMEA se iniciou. Para
estes, participar da AMEA era uma forma de se manterem próximos dos grandes
clubes, usufruindo do carisma dos mesmos, mesmo que para isso deveriam se submeter
às normas específicas do grupo.
Mas
a grande expectativa girava em torno do que faria o campeão de 1923 – o Vasco
da Gama, diante de tal situação. Por unanimidade, os fundadores da AMEA
decidiram convidar o Vasco a participar da nova entidade, mas sob as mesmas
condições impostas aos demais clubes pequenos. As posições dentro do próprio
clube eram divergentes. Alguns sócios, liderados pelo ex-presidente Antônio
Campos eram contrários à filiação à AMEA; e outros, liderados pelo sócio
benemérito José da Silva Rocha, eram favoráveis à filiação.
Diante
da determinação da AMEA de que os clubes pequenos quando jogassem entre si, só
disputariam partidas aos sábados, enquanto que os grandes jogariam sempre aos
domingos – o que na prática trazia prejuízos frente aos públicos menores dos
jogos nos sábados (provando mais uma vez a distância entre o discurso do
amadorismo e a prática profissional dos grandes); principalmente da exigência
de eliminação de 12 atletas, sendo sete do primeiro quadro e cinco do segundo, escapando
somente os jogadores Nelson, Mingote, Paschoal e Torterolli do time campeão de
1923, a diretoria do Vasco da Gama pediu o seu desligamento da AMEA, anunciou o
seu retorno à LMDT e publicou um ofício nos principais jornais da cidade,
explicando com exatidão todas as insatisfações do clube.
Este
documento é conhecido entre os vascaínos como a “Resposta Histórica”.
Provavelmente,
além da implicância com a participação jogadores pobres, negros e
profissionais, os clubes fundadores estavam preocupados com a perda da
supremacia esportiva – e com ela a redução do número de aficionados e
consequentemente a diminuição da renda, por exemplo, − diante do excelente
desempenho dos clubes filiados, com equipes bem mais estruturadas e com
jogadores cada vez mais talentosos.
Quando
observamos a carta do Vasco da Gama endereçada à AMEA, percebemos que o
primeiro tentava atacar diretamente os representantes da nova entidade,
revelando o interesse em se opor e, de certa forma, atingir os alicerces
políticos da AMEA. Inicialmente, o presidente vascaíno, José Augusto Prestes,
demonstrou seu descontentamento em relação ao excesso de autoritarismo por parte
dos grandes clubes, principalmente os “privilégios
concedidos aos cinco clubs fundadores da AMEA e a fórma porque será exercido o
direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações”.
Posicionando-se
como uma vítima dos mandos e desmandos políticos da AMEA, o presidente ainda
destacou que o estatuto era preconceituoso, e que a posição subalterna do Vasco
da Gama estava sendo definida a partir das “difficuldades
do nosso campo, [...] [da] simplicidade de nossa sede, [e da] condição modesta
do grande número dos nossos associados”.
Mantendo
seu discurso sobre o preconceito social, José Augusto Prestes não se conformou
com o afastamento sumário de alguns de seus jogadores. Para ele, “o processo por que foi feita a investigação
das posições sociaes desses nossos consórcios foi levado a um tribunal onde não
tiveram nem representação nem defesa”, afastando dos campos “alguns dos que lutaram para que tivéssemos
entre outras victórias, a do Campeonato de Football da cidade jovens, quasi
todos brasileiros, no começo da sua carreira”.
A
resposta da AMEA ao ofício do Vasco da Gama reforça a proposta de que essa
entidade buscava uma forma de assegurar o controle político do futebol.
Surpreso por tomar conhecimento do ofício pela leitura dos jornais, Arnaldo
Guinle rebateu o protesto sobre o excesso de autoritarismo por parte dos clubes
fundadores destacando que a organização da AMEA já era conhecida pelo Vasco antes de seu pedido de filiação”,
e reforçou que os direitos dos fundadores
da AMEA, não seriam os mesmos concedidos ao clube cruzmaltino. No que tange ao
impedimento de alguns atletas do Vasco da Gama, Arnaldo Guinle se mostrou
surpreso pelo fato do Vasco não ter protestado em relação à sindicância,
afirmando que nunca poderia ter negado a quem quer que fosse o direito de
defesa, porém em seguida o dirigente justificou a situação alegando
impossibilidade de discutir “todos esses
casos particulares naquelle momento, dada a exigüidade de tempo que nos
separava do início dos campeonatos officiaes da actual temporada sportiva”.
Aquilo
que, aparentemente parecia uma justificativa embasada nos critérios políticos,
mostrou-se afinal como um critério subitamente aleatório. Mesmo embasando suas respostas sob um foco
estritamente político, a carta do presidente da AMEA revelou certo preconceito
social quanto à composição da equipe do Vasco da Gama.
A
posição social de muitos sócios portugueses do Vasco da Gama garantia parte do
prestígio do clube diante dos olhos de Arnaldo Guinle. Contudo, o cultivo das
boas relações entre Guinle e alguns nomes da elite lusitana não foi suficiente
para que o Vasco da Gama mantivesse a sua equipe. Mesmo com o corte da maioria
dos atletas, os critérios estabelecidos pela AMEA acabaram poupando alguns
jogadores consagrados na temporada de 1923 como o goleiro do Vasco da Gama
Nelson da Conceição. A permanência do goleiro Nelson, um modesto chofer, apesar
de todo o radicalismo dos novos estatutos, revela que as possibilidades de
acesso de jogadores pobres e que exercessem profissão braçal permanecia
indicando que os critérios de seleção permaneciam imprecisos, contraditórios e
possivelmente ligados a interesses políticos particulares.
José Augusto Prestes
Presidente do Vasco da Gama em 1924
Arnaldo Guinle
Presidente da AMEA em 1924
Em
resumo, repetindo o que ocorrera em 1912, em 1924 tivemos dois campeonatos. Um
organizado pela LMDT, vencido novamente pelo Vasco; e o outro organizado pela
AMEA, vencido pelo Fluminense. Os dois campeões são hoje reconhecidos pela
FERJ.
Em
1925, o Vasco foi admitido na AMEA, graças ao apoio de Carlito Rocha então
presidente do Botafogo (muitos dizem que aí está a
origem da amizade entre botafoguenses e vascaínos), que soube vencer as resistências
internas na AMEA. Para ser admitido, o Vasco aceitou sediar os seus jogos no
campo do Andaraí, na rua Barão de São Francisco, onde hoje está o Boulevard Rio
Shopping; mas pode manter todos os seus jogadores campeões em 1923 e 1924
incondicionalmente.
A LMDT não foi extinta em continuou organizando campeonatos estaduais até 1932, tendo como campeões os seguintes clubes: 1925 - Engenho de Dentro AC; 1926 e 27 - Modesto FC; 1928 e 29 - Sport Club America; 1930 - Grêmio Esportivo Santa Cruz; 1931 - Oriente AC; e 1932 - Sport Club Boa Vista. Curiosamente, nos dias atuais, para efeito de contagem de títulos, a FERJ não considera tais campeonatos, ao contrário do que faz em relação a 1924 com o título do Vasco.
Mais uma vez se pacificava o futebol carioca, até que nova cisão aconteceria. Mas isso é papo para o nosso próximo texto.
Fluminense campeão de 1924 pela AMEA
Time base: Haroldo, Léo, Petit, Nascimento, Floriano, Fortes, Zezé, Lagarto, Nilo, Preguinho e Moura Costa
Vasco da Gama campeão de 1924 pela LMDT
Em pé: Leitão, Mingote, Brilhante, Negrito, Nelson, Ceci, Russinho, Arthur, Pascoal e Torterolli.
Agachado: Bolão
Muito legal, Kiko!!! Este texto merecia ser em 2 partes, mas está muito bacana o trabalho de pesquisa. Parabens!!!
ResponderExcluirObrigado amigo! Dica anotada!!!
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